
Hidrocefalia de Pressão Normal (HPN)
(Caso hipotético)
Seu Domingo, um senhor de 65 anos vem há alguns meses apresentando uma deficiência cognitiva, que seus netos referem como demência. Além disso já não anda muito bem, caminha com passos crutos e lentos, às vezes perde o equilíbrio e também urina na roupa com frequência.
Um quadro que para muitos pode parecer simplesmente uma coisa: a idade chegando e trazendo seus costumeiros inconvenientes. Essa apresentação, entretanto, pode fazer parte de um distúrbio neurológico muito prevalente e que costuma manifestar-se por meio de uma tríade clássica.
O seguinte artigo faz uma revisão acerca da Hidrocefalia de Pressão Normal e está disponível na íntegra nessa página. Faremos aqui ainda uma breve abordagem da Hidrocefalia como condição patológica e focaremos na discussão da Hidrocefalia de Pressão Normal, dando início, assim, ao tópico da discussão de artigos!
RESUMO RÁPIDO (RR): condição patológica importante devido à resolubilidade do quadro clínico.
Apresentação clínica = Apraxia de marcha, demência, incontinência urinária, achados radiológicos de ventriculomegalia e achados laboratoriais de pressão liquórica normal.
- A Física dos fluidos aplicada ao SNC
Um bom começo para entendermos hidrocefalias é retomarmos ou tomarmos pela primeira vez os conceitos referentes à Hidrostática e à Hidrodinâmica. Essa abordagem faz-se necessária, visto que as primeiras tentativas de explicar o foco dessa discussão, a HPN, teve como base os princípios de Pascal. Isso se deve às propriedades proporcionadas pelo sistema ventricular e pela circulação liquórica. O líquor se assemelha em constituição ao plasma sanguíneo e apresenta particularidades quanto à celularidade, dosagem de proteínas e de glicose, além de íons presentes. Dessa forma, o primeiro conceito físico que podemos inferir a um sistema fluido em um compartimento como a caixa craniana refere-se ao empuxo e, de fato, o liquido cefalorraquidiano proporciona uma força vertical orientada para cima de módulo igual ao peso do volume do líquido deslocado, impedindo que o parênquima encefálico atrite contra as estruturas da base do crânio, sendo a descompensação entre a força da gravidade e o empuxo um importante mecanismo de lesão em traumatismos cranioencefálicos. A figura abaixo ilustra a circulação liquórica e sua passagem pelo espaço subaracnóide e pelos ventrículos.
Relembrando alguns princípios da hidrostática, salientamos:
- Princípio de Stevin: "A diferença entre as pressões em dois pontos dentro de um líquido em equilíbrio é igual ao produto densidade do líquido pelo módulo da aceleração da gravidade do local onde é feito a observação, pela diferença entre as profundidades consideradas." O famoso dg(h1-h2).
- Princípio de Pascal: "Se houver um aumento de pressão num ponto do fluído contido num recipiente, pela ação de uma prensa externa esse aumento se transmitirá a todos os outros pontos dos fluídos, inclusive às paredes do recipiente". Esse princípio é ilustrado na prática por meio das prensas hidráulicas, gerando a relação fundamental pela qual explicaremos a Hidrocefalia de Pressão de Normal: P=F/A, em que P equivale à pressão, F à força e A à área.
Relembrando alguns princípios da hidrodinâmica, salientamos:
- Teorema de Bernoulli: esse princípio aplica o princípio da conservação de energia ao sistema de fluido em movimento, expressando que "um fluido ideal (sem viscosidade nem atrito ou dito incompressível, cuja densidade não muda no decorrer do movimento, e sem resistência a tal movimento) em regime de circulação por um conduto fechado, a energia que possui o fluido permanece constante ao longo de seu percurso". Essa conservação de energia envolve a energia cinética do líquido em movimento, a energia potencial gravitacional de um líquido a determinada altitude e a energia de fluxo que o líquido contém devido à pressão que exerce. Dessa forma a área de secção transversal de um tubo multiplicada pela velocidade do fluido naquele instante é igual à área de secção transversal em outro ponto do tubo multiplicada pela velocidade do fluido naquele outro ponto.
- Montante: refere-se ao ponto em direção à nascente, se tomarmos como referência um rio, por exemplo. Aqui quando falarmos de montante, nos referimos a tudo que está acima de uma possível obstrução na circulação liquórica.
- Jusante: refere-se ao ponto em direção à foz, se tomarmos como referência um rio, por exemplo. Aqui quando falarmos de jusante, nos referimos a tudo que está abaixo de uma possível obstrução na circulação liquórica.
Agora, munidos com esses conceitos, tentaremos dar alguma utilidade e aplicabilidade dentro da compreensão dos mecanismos de Hidrocefalia, principalmente a de pressão normal. Acalme-se e vamos retornar para a amada física quando abordarmos as relações de pressão, força e área no aumento ventricular também frequente na HPN. A seguir vamos generalizar um pouco acerca dos tipos de hidrocefalia.
- Classificação das Hidrocefalias
Comumente, os livros mais tradicionais dividem essas patologias em:
1) Comunicante ou não comunicante: refere-se à existência ou não de uma obstrução, sendo a comunicante aquela em que não há obstrução, ou seja, há comunicação tanto no sistema ventricular quanto no espaço subaracnoide. A Hidrocefalia não comunicante se dá pela obstrução da passagem do líquor, sendo o aqueduto de Sylvius ou mesencefálico um forte concorrente para essa obstrução. Dessa forma, tudo que está à MONTANTE estará dilatado, pois eu impedi a passagem do terceiro para o quarto ventrículo, congestionando tudo que está acima do nível da obstrução. Aplicando rapidamente o Teorema de Bernoulli à hidrocefalia não comunicante por uma estenose ao nível do Aqueduto de Sylvius, podemos inferir que A1V1 = A2V2, portanto a velocidade do líquor acima da estenose (estreitamento) é menor que ao nível do aqueduto.
2) Congênita ou adquirida: essa classificação é autoexplicativa. Toda condição congênita refere-se aquela que o recém-nascido traz consigo.
3) Fisiológica ou não fisiológica: quanto à hiperprodução do líquor ou baixa absorção ao nível, principalmente, das granulações aracnoideas.
4) Interna ou externa: refere-se à localização, sendo a interna no sistema ventricular e a externa ao nível do espaço subaracnoide.
5) Aguda ou crônica: classifica quanto ao tempo de desenvolvimento da condição hidrocefálica. Caso seja um caso de hidrocefalia congênita no qual percebe-se a condição em um curto intervalo de tempo, pode ser considerado um caso agudo. Em contrapartida, se a condição se desenvolve de forma insidiosa e após esse intervalo, podemos estar enfrentando uma caso crônico, como geralmente ocorre na Hidrocefalia de Pressão Normal.
O ARTIGO apresentado se propõe a discutir desde o aspecto histórico da Hidrocefalia de Pressão Normal, até a fisiopatologia e o curso da tríade clássica. Destacamos a descoberta, visto que é difícil encontrar fontes com essa preocupação, sendo a História de suma importância para os futuros da ciência médica. Portanto, descrita em 1964 por Salomón Hakim em Bogotá, Colômbia, é uma doença insidiosa que acomete, sobretudo, idosos entre 60 e 80 anos. Curiosamente, o primeiro caso encontrado por Salomón ocorreu com um jovem de 16 anos de idade, em 1957, após um traumatismo cranioencefálico (TCE), resultante de um acidente automobilístico. Esse primeiro caso ilustra uma condição secundária de HPN, que pode cursar com a mesma tríade clássica discutida posteriormente, porém é decorrente de uma condição primária, que pode ser uma hemorragia subaracnoide (HSA), hemorragia intraventricular decorrente de traumas, rupturas de aneurismas e meningites. A Hidrocefalia de Pressão Normal que vamos focar nessa discussão tem geralmente etiologia idiopática (HPNi) e apresenta-se comumente em idosos. A tese de doutorado em medicina pela Universidade Nova de Lisboa, de Bugalho, P.M.F. ao abordar o sistema fronto-estriatal (discutido mais a frente) define claramente a Hidrocefalia de Pressão Normal como uma síndrome caracterizada pela tríade e originada por aumento da resistência à absorção do LCR. Enquanto no caso das HPN secundárias, esta dificuldade de absorção é um efeito não agudo de doenças que lesam o espaço subaracnóide, como as condições citadas anteriormente. A HPN frequentemente cursa com aumento ventricular, demência, incontinência urinária e dispraxia da marcha, podendo ocorrer algumas complicações no manejo desses pacientes.
Para que não haja confusão, o caso foi descrito em 1964 na tese de Salomón, mas a apresentação desse primeiro paciente ocorreu em 1957 e nesse intervalo de 7 anos, o médico deparou-se com outros pacientes manifestando condições semelhantes, passando a elaborar uma explicação daquela situação de ventriculomegalia, sem aumento da pressão intracraniana. De fato, a hidrocefalia clássica cursa com aumento da pressão intracraniana, manifestada em sinais clássicos, como o sinal do sol poente. A conservação da pressão normal na HPN, porém, exigiu testes empíricos, relações matemáticas e conceitos físicos para ser explicada. Nós já discutimos o princípio de Pascal aplicado à prensa hidráulica e de lá extraímos a relação F=P/A. Pois bem, imaginemos um ventrículo lateral internamente como um balão de festa de aniversário. O envoltório do balão corresponde às paredes do ventrículo, a cavidade ao espaço dentro do balão e à medida que aumentamos a quantidade do fluido (líquido ou gás) nesse espaço, temos uma relação da força imposta pelo choque das partículas na área correspondente à parede desse recipiente, o que resulta em uma pressão.
A HPN envolve uma constância na variável Pressão, então temos a força e a área variando segundo a relação discutida. Se conseguíssemos provar que existem pressões iguais em niveis de dilatação ventricular diferentes, poderíamos verificar a aplicabilidade do princípio de Pascal e da prensa Hidráulica dentro dos ventrículos cerebrais. E foi isso que Salomón Hakim fez (confira na imagem acima e nos gráficos presentes no artigo), ele testou empiricamente diferentes níveis de expansão de um balão e mediu suas pressões, de tal forma que um balão nitidamente "pouco cheio" continha a mesma pressão que outro nitidamente "muito cheio". Logo, a relação matemática era válida naquela situação pela variação das duas outras incógnitas, a FORÇA e a ÁREA. De fato, ao aumentarmos a área da parede do balão/ventrículo pelo aumento do volume, constata-se uma maior força exercida pelas partículas do fluido naquele recipiente, sendo essas grandezas diretamente proporcionais e o sucessivo aumento volumétrico anulando o aumento pressórico.
Uma vez confirmada a possibilidade física de a pressão se manter constante mesmo com um aumento do conteúdo fluido, partiu-se para a fisiopatologia e é o que discutiremos a seguir.
-Fisiopatologia
A tríade clássica deve ser memorizada : demência, incontinência urinária e distúrbio de marcha, mas além disso devemos raciocinar para tentar explicar essa apresentação. Inicialmente, é necessário salientar que a HPN deve ser conhecida e reconhecida, pois consta em uma das principais causas de demências reversíveis, podendo também apresentar involução dos outros sinais. Agora que você já ficou atento, vamos discutir a neurologia dessa condição.
A compreensão desse quadro deve partir de uma visão anatômica, iniciando-se pela lembrança de que marginalmente às paredes ventriculares transitam fibras em direção ao córtex e de origem cortical também. Sendo assim, o aumento da parede ventricular pode interferir na transmissão dos impulsos carregados por esses axônios e, dependendo do trato acometido, diferentes apresentações são possíveis. Vamos, assim como o artigo, citar e comentar cada componente da tríade de apresentação do paciente, lembrando que o curso dessa sintomatologia não é concomitante e, o paciente pode apresentar esses componentes em momentos distintos da evolução do quadro.
1) Distúrbio de marcha: às vezes referido como dispraxia ou apraxia, envolve uma condição que não apresenta um achado patognomônico, mas pode ser referida como uma dificuldade no ato de caminhar, como passos arrastados e lentos, podendo ainda existir algum grau de desequilíbrio. Esse achado geralmente é o primeiro no curso clínico da doença, sendo portanto de vital referência para suspeita da HPN. A diferenciação com outros tipos de marcha como a parkinsoniana, pode ser feita ao atentar-se que na primeira o balanço dos braços ao andar não encontra-se preservado, enquanto na HPN essa característica está preservada. É o sintoma mais responsivo à terapêutica de derivação liquórica. O artigo salienta que as hipóteses quanto a fisiopatologia das condições não se encontram muito bem estabelecidas, mas cita que a "ventriculomegalia (vamos guardar esse raciocínio para os próximos componentes) pode ser a responsável pela compressão e/ou deformação das fibras dos neurônios motores superiores que passam pela porção medial da corona radiata". veja a figura a seguir de uma tratografia que ilustra a grande quantidade de fibras que têm seu trajeto próximo aos ventrículos laterais:
2) Alterações cognitivas: a demência é um tema muito presente em diversas especialidades médicas e envolve pacientes de diversas faixas etárias. O idoso, porém, significativamente é apontado como um indivíduo que naturalmente tem suas capacidades cognitivas diminuídas, e esse pode ser um processo fisiológico de envelhecimento do SNC, no qual alguns afirmam ser proveniente do adelgaçamento dos giros e alargamento dos sulcos corticais, mas que é melhor explicado pela diminuição relativa do sono REM em relação aos outros estágios do sono, o que afetaria o armazenamento e processamento de informações. A questão é que essa demência pode ser reversível e principalmente se a etiologia for proveniente dessa Hidrocefalia de Pressão Normal. Tais alterações podem ser identificadas pela aplicação do Minimental, "identificando-se déficits para realização de cálculos, concentração, escrita de frases, copiar a intersecção de pentágonos e seguir comandos de três estágios". Assim, especula-se que o sistema fronto-estriatal possa estar acometido, talvez também pela ventriculomegalia. Além disso cita-se a importância das fibras de projeção, que são estruturas subcorticais passando próximo aos ventrículos laterais.
3) Incontinência urinária: normalmente é o último dos sinais a aparecer nesse curso clínico e pode indicar um estágio mais avançado. Para explicar essa manifestação mais uma vez o artigo leva em conta a expansão ventricular com consequente aumento da força nas suas paredes, de tal forma que cita-se "a interrupção das vias neuronais periventriculares que se direcionam ao centro sacral da bexiga urinária, levando à hiperatividade do músculo detrusor", o que se supõe essas fibras interrompidas terem uma função inibitória, visto sua interrupção relacionar-se à hiperatividade.
Bom, a discussão desse artigo bem interessante se encerra por aqui, e para informações mais detalhadas leia o artigo disponibilizado acima do título dessa postagem. Esperamos ter abordado a HPN de maneira satisfatória e a Hidrocefalia de forma geral de maneira suscinta e bem embasada, visto que muitas vezes o entendimento físico dessa condição é relegado.





