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  • ID: Paciente do sexo masculino, 10a, natural da Índia 

 

  • QP: Dor escrotal com repuxo testicular  

 

  • HDA: Paciente veio ao serviço relatando dor episódica lancinante na região escrotal associada com repuxo repetitivo para cima e para baixo do testículo direito nos últimos 7 meses. Os eventos normalmente duravam 2 a 3 minutos, iniciavam e terminavam abruptamente e ocorriam aproximadamente 10 vezes todo mês, algumas vezes durante o sono. O episódio do dia anterior à hospitalização foi dramático, de modo que o “ataque escrotal” levou a “convulsões” envolvendo o mmii direito, acompanhado de fraqueza. 

 

  • Ao exame de admissão:  

- Função cognitiva normal. 

- Função dos nervos cranianos normal. 

- Funções motora e sensitiva dos mmss normais. 

- Monoparesia crural direita com grosseira sensibilidade superficial, porém com propriocepção articular preservada no mesmo membro. 

- Função sensorial cortical não avaliada por falta de cooperação. 

- Reflexos: cutâneo-plantar direito extensor; cutâneo-abdominal e cremastérico direitos ausentes; patelar e aquileu direitos patologicamente rápidos. 

- Exame de fundo de olho (fundoscopia) normal. 

 

Dois dias após a admissão, a força no mmii direito retornou à quase normalidade, apesar da resposta plantar permanecer extensora e os reflexos abdominal e cremastérico do lado direito continuarem ausentes. Nos 3o e 4o dias de hospitalização, os eventos foram presenciados pelos médicos. O garoto estava brincando animadamente quando, de repente, começou a gritar e levou as mãos ao escroto. Perceberam que seu testículo direito apresentava um repuxo arrítmico de sobe e desce (numa frequência de 2 a 3 vezes por segundo), durando aproximadamente 1 minuto e meio, e depois permaneceu numa posição elevada por cerca de 1 minuto. Os eventos todos duraram 2 minutos e meio, e houve um lento retorno do testículo direito para sua posição normal, juntamente com o escroto. Nenhuma contração ou puxão da musculatura abdominal baixa foi evidenciada durante os episódios.  

 

  • Exames complementares: 

- Contagem de leucócitos normal. 

- Velocidade de hemossedimentação (VHS): 55mm na 1ª hora. (Está aumentado, visto que para crianças os valores variam de 3 a 13mm, estando sujeitos a alterações referenciais de acordo com os laboratórios)

- Análise de urina e de fezes normal. 

- Radiografia simples do crânio normal. 

- Teste de Mantoux: reator forte. 

- Eletroencefalograma (EEG) no 10° dia de admissão: atividade epiléptica aleatória sobre a área central esquerda com fase reversa em C3. 

- Tomografia computadorizada (TC) de crânio no 2° dia de admissão (figura 1): 











 

  

Figura 1: Imagem de TC do crânio evidenciando uma lesão cortical superficial (seta) em região paracentral esquerda, circundada por uma extensa zona hipodensa (elipse) sugestiva de edema.  

 

Caso do Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry 1987;50:1233-1234 

 

E aí, galera? Diante de tudo o que foi exposto do caso, a qual diagnóstico de base vocês chegariam? Por que o garoto apresentava tais episódios? Como você o trataria? 

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Então, pessoal, pelo exame de imagem realizado, surge aos nossos olhos uma lesão sem limites precisos e densidade  variada. Sendo vocês pessoas muito atentas, vão agregar à sua investigação o teste de Mantoux, que foi reator forte (maior ou   igual a 10mm), e o local do relato de caso, que foi na Índia, país subdesenvolvido com altas taxas de... tuberculose (Tb)! Não só de Tb pulmonar mas também de extrapulmonar, chegando a altíssimas incidências de 20 a 30% de lesões intracerebrais!(1) Portanto,
pessoal, estamos diante de um tuberculoma cerebral, diagnóstico de base do paciente. A Tb no sistema nervoso central  (SNC)
corresponde a 10% de todos os casos tuberculosos, apresenta alta mortalidade e afeta principalmente crianças e  imunocom -
prometidos, infectados pelo HIV (2). Dentre suas formas de apresentação,estão os tuberculomas cerebrais,a meningite  tuber -
culosa e a aracnoidite espinhal.Falando sobre o que mais nos interessa no momento,os tuberculomas cerebrais constituem -se em lesões de incidência variável, porém bem mais comuns em países subdesenvolvidos do que países desenvolvidos (3) . 
Podem ser únicos ou múltiplos e têm uma localização estatística de 2/3 no cerebelo e de 1/3 nos hemisférios,principalmente  nos lobos frontais e parietais, podendo, claro, localizar-se em qualquer outro lobo (1). A apresentação radiológica pode mime-
tizar outras lesões, como gliomas e meningiomas, mas se espera, à TC, imagem sólida de formato redondo ou lobulado, com densidade variável, podendo ou não ter calcificação central, achado típico de tuberculoma, porém infrequente(1). Pode ainda haver edema perilesional, como o presente na TC do garoto do caso, mais evidente em lesões recentes (1).   Para  diferenciar
granulomas a tarefa é árdua, mas entra no diagnóstico diferencial (ddx) a sarcoidose, que, de forma simplificada,causa lesões
intracerebrais geralmente sem edema em volta. Outros ddx são: neurocisticercose, micoses profundas, neurossífilis,esquistos-somose, aneurisma (especialmente o trombosado), esclerose múltipla, tumores primários, metástases, infartos e abscessos, inclusive o tuberculoso(3). A idade do paciente serve de pista para ddx, sendo, por exemplo, raro metástases cerebrais em jo -
vens e bem mais comum tuberculoma nessa faixa etária (acredite:cerca de 90% dos pacientes com tuberculoma na Índia têm
menos de 20 anos, assim como o nosso pequeno indiano (3). Quanto à apresentação clínica, ela varia de acordo com a localização da lesão, mas convulsões e sinais e sintomas de hipertensão craniana são frequentes(3). Já sabendo o diagnóstico,va-mos entender o quadro clínico do nosso garoto.Os episódios do rapaz de dor escrotal associada a um repuxo testicular nada 
mais são do que uma forma incomum de crise convulsiva do tipo focal (assim como relatos de calor clitoriano desconfortá -
vel e de epilepsia orgásmica, pasmem!)(4). De uma forma ampla,as crises convulsivas são divididas em focais ou parciais,e em
generalizadas. As focais, que foi exatamente o tipo que aconteceu com o menino do caso, envolvem descargas elétricas anormais em uma área delimitada do cérebro,enquanto as generalizadas envolvem anormalidades elétricas nos dois hemisférioscerebrais. E a gente pode ir ainda mais longe. Sendo uma crise convulsiva focal, podemos dividir em três subtipos: caso a consciência do paciente durante o episódio se mantenha e até mesmo permita testemunhar o evento, isso se configura numacrise focal simples;caso a consciência do paciente durante o episódio se altere(parada comportamental súbita,automatismos,comportamentos involuntários), isso se configura numa crise focal complexa;caso ocorra inicialmente uma crise focal que sedesenrole em uma crise generalizada, isso se configura numa crise focal secundariamente generalizada (5). Pois então,nosso
paciente apresentou durante 7 meses crises convulsivas do tipo focal simples, e a sintomatologia dele dependeu da área  do
do cérebro com desorganização elétrica,no caso, exatamente na área do tuberculoma: região paracentral esquerda. Vocês de-vem se lembrar de que essa região envolve o giro pré-central, envolvido com a função motora, e o giro pós-central, envol-
vido com a função somatossensorial. Dando uma olhada no homúnculo cortical de Penfield (figura 2) e buscando a localização
aproximada do tuberculoma do paciente (mais próximo da linha media), percebemos que a área atingida poderia envolver o tronco, quadril e mmii, condizente, por exemplo, com as alterações patológicas o paciente apresentou dos reflexos cutâneo -
-abdominal, cremastérico, cutâneo-plantar, patelar e aquileu direitos. 

 









 

Figura 2: Homúnculo cortical de Penfield 

Retirado de http://www.egreenway.com/reason/touch.htm Acesso em 23 de setembro de 2015 às 21h15 

 

E de onde vêm esses repuxos testiculares e essa dor escrotal, pelo amor de Hipócrates? Pela correspondência da localização do tuberculoma com a clínica,é de se esperar que haja algum centro cortical que ative involuntariamente o músculo cremas-
ter, um músculo estriado responsável por elevar o testículo ipsilateral, regulado também por mecanismos espinhais (com neurologia ainda imprecisa(4). Assim, apesar de embriologicamente considerado como uma pequena extensão do músculo oblíquo interno do abdomen, o cremaster e oblíquo não necessariamente entram em ação em conjunto(4), fato este corro-borado quando nenhuma contração no abdomen inferior do garoto foi evidenciada durante a crise. Então, organizando:o tu-berculoma na região paracentral esquerda desregulou as descargas elétricas da área, ativando desordenamente o músculo cremaster do lado direito (contralateral à lesão), causando os repuxos assimétricos frenéticos. A dor escrotal associada apa-rece como uma forma também rara de manifestação ictal e geralmente se relaciona com lesões parietais (como a do nosso garoto) ou ocasionamente com lesões temporais. Vale salientar também que a monoparesia em mmii direito,evidenciada após a intensa crise anterior ao dia da hospitalização pode representar um efeito pós-ictal,com duração variável, de alteração da motricidade no segmento corporal envolvido, situação conhecida como paralisia de Todd(5). Tudo tranquilo até aqui? Conseguimos diagnosticar o paciente, tentamos entender a sintomatologia dele, mas e aí, como ele foi tratado? Optou-se pelo tratamento medicamentoso, de melhor prognóstico do que uma possível intervenção cirúrgica(3), e foram prescritos estreptomicina, rifampicina e isozianida. Após 6 meses de tratamento, foi evidenciado em uma nova TC de crânio o total desaparecimento do tuberculoma, em consonância com a remissão dos sintomas do garoto.  

 

E é isso, pessoal. Esse caso tinha o intuito de ilustrar uma apresentação atípica de crise convulsiva e de chamar nossa atenção acerca da necessidade de um bom entendimento anatamofisiológico das correlações encéfalo-corpo. Um abraço! 

 

Referências 

1. BARROSO, ELIZABETH CLARA et al. Tuberculoma cerebral. J. Pneumologia [online]. 2002, vol.28, n.1, pp. 55-58. ISSN 1678-4642. 

2. CHATTERJEE, SANDIP. Brain tuberculomas, tubercular meningitis, and post-tubercular hydrocephalus in children. Journal of Pediatric Neurosciences. 2011;6(Suppl1):S96-S100. doi:10.4103/1817-1745.85725. 

3. FAGUNDES-PEREYRA, WJ, CARVALHO, GTC, GIANETTI A, SOUSA AA. Cerebral tuberculoma: Report of two cases. Acta Medica Misericordiæ 1999; 2(2):80-84 

4. Scrotal pain with testicular jerking: an unusual manifestation of epilepsy. Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry 1987;50:1233-1234 

5. Introdução à Neurologia e Neurocirurgia. Fortaleza. Premius, 2015. (garanta já o seu no link: http://www.neanufc.com/#!livro/c99c)  

 

Caso clínico “Dor escrotal com repuxo testicular” .

Editora do caso: Manuela Pessoa

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